As razões que levaram os Beatles a abandonar as turnês no auge da fama vão muito além das alegações de baixa qualidade artística do espetáculo (em virtude da histeria dos fãs e equipamentos inadequados da época para grandes arenas), cansaço pelas excessivas viagens e pouco tempo para se dedicarem à composição. Em 1966, a maior banda do planeta vivia um inferno astral mesmo estando no auge da popularidade. Afinal, eles eram o epicentro da maior revolução cultural da história ocidental, então em pleno curso.
Naquele ano, que marcaria uma forte guinada musical na trajetória da mais importante banda de todos os tempos, o quarteto de Liverpool sentia o gosto amargo da fama. Em razão das polêmicas declarações de John Lennon sobre o cristianismo no final do ano anterior, eles eram bombardeados (tanto quanto adorados) mundo afora, especialmente nos EUA.
Durante uma série de matérias para a imprensa local sobre o perfil dos integrantes da banda, Lennon analisava as mudanças pelas quais o mundo passava, especialmente em função da força que os veículos de comunicação haviam atingido com o advento da televisão em rede nacional e mundial. Ao se referir ao cristianismo, cuja perda de espaço era tema de debates no Reino Unido desde a primeira guerra mundial, o músico usou a fama da banda como exemplo das fortes transformações que o mundo inteiro vivia. “Se tivesse usado a televisão ou qualquer outro elemento para ilustrar a comparação, eu teria me safado, mas usei o próprio conjunto, o que caiu como uma bomba”, declarou à época em uma coletiva para suavizar a situação, pouco antes da turnê nos EUA, onde o ambiente que os esperava era sombrio e perigoso.
Na Inglaterra, a declaração de popularidade da banda ser superior à da religião cristã não surtiu tanto efeito. Mas nos EUA, a declaração foi publicada fora de contexto em uma revista adolescente sensacionalista. Ao contrário do Reino Unido, os EUA viviam um forte crescimento do cristianismo a bordo da nova teologia, que ganhava impressionante força com o fundamentalismo das seitas e seus pastores midiáticos. As palavras de Lennon foram consideradas uma blasfêmia e as campanhas anti-Beatles atingiram patamares inimagináveis, com queimas coletivas de discos, fotos e materiais da banda, protestos nas ruas e até celebrações comandadas pela extremista organização Ku Klux Klan.
O verdadeiro inferno- Mas o momento mais crítico e perigoso que o grupo viveu durante esse tumultuoso período de sua história, nada tinha a ver com religião. Antes de chegar aos EUA, a banda tocou no Japão e Austrália. Ao desembarcar nas Filipinas, onde eram aguardados como verdadeiros deuses (sic), eles esbarrariam na truculência e arrogância da ditadura sanguinária e corrupta do casal Ferdinand e Imelda Marcos. A presença deles no país não passava de um capricho da primeira dama e uma grande recepção oficial foi preparada para eles no Palácio de Malacañang. Sentindo-se usados pelo casal em busca de popularidade para seu regime ferrenho, eles se recusaram a comparecer, entre um show e outro. O episódio mudou totalmente o clima favorável da banda no país.
A negativa foi considerada um insulto e no dia seguinte ao que seria o da recepção, as manchetes da imprensa filipina tratava a rejeição como humilhação. Acostumada durante mais de 20 anos do Governo ditador de seu marido a ter todos os seus desejos e caprichos prontamente atendidos, Imelda não ficou nada satisfeita com o não aparecimento dos rapazes de Liverpool e empreendeu uma forte campanha institucional contra a banda. Com a manchete "Imelda humilhada pelos Beatles", todos os jornais anunciavam ao povo das Filipinas que a banda mais famosa do mundo esnobou e negou a encontrar-se com a primeira-dama.
Nunca, os Fab Four, então no auge da fama, sofreram uma humilhação semelhante à daquele dia 5 de julho de 1966, quando foram obrigados a fugir até o aeroporto e abandonar o país entre golpes e insultos. O promotor das apresentações dos Beatles na Filipinas, Ramon Ramos, afirmou que a afronta o autorizava a não pagar à banda, enquanto falsas ameaças de bomba eram anunciadas na embaixada britânica e no Manila Hotel, onde estavam hospedados.
Ringo Starr lembraria anos depois que o tratamento dos empregados do hotel estava mais frio, e eles tiveram que carregar a própria e gigantesca bagagem, incluindo equipamentos. Mas o pior ainda estava por vir. No aeroporto, onde tomariam um avião com destino à Índia, foram impedidos de embarcar. O responsável do Escritório de Rendas Internas do governo, disse que os Beatles não deixariam o país até que pagassem os impostos que supostamente não tinham sido recolhidos desde a chegada da banda. O empresário do grupo, Brian Epstein, que começava a conhecer o sistema de corrupção da família Marcos, pagou de seu bolso os US$ 18 mil. Mesmo assim, o dedicado empresário não conseguiu suavizar a "via-Sacra" organizada contra seus pupilos. No trajeto até o avião, que foram obrigados a fazer a pé, aproximadamente 300 pessoas aguardavam a banda para a despedida do país, realizada com empurrões, cuspes, agressões e gritos de "Beatles, vão embora!".
Ringo foi quem mais sofreu, recebendo um soco na cara e sendo pisoteado depois de desmontar no asfalto do aeroporto. Outro integrante da equipe foi duramente agredido e teve dentes quebrados. George Harrison achou que não sairiam vivos dali. Melhor sorte tiveram Paul, John e outros membros da trupe, que se protegeram atrás de um grupo de freiras que subia no mesmo avião, que só decolou após mais de uma hora de confusão e ameaças.
Nenhum dos Beatles ou de sua equipe jamais voltou ao país e todos concordaram que foi o pior lugar que já estiveram na vida. Tal episódio e a sequência de reveses que teriam no decorrer da turnê, especialmente nos EUA, com ameaças fervorosas de morte entre aplausos e histerias, levaram os rapazes a repensar as turnês. Com a sorte virada, Harrison chegou a declarar que havia chegado a hora de parar com aquela loucura. E há 47 anos, no Candlestick Park, em San Francisco, os Beatles cumpriam sua última agenda oficial de apresentações em público. E as composições e álbuns que se seguiram nos últimos quatro anos de carreira da banda mudaram para sempre o patamar de qualidade e a face da música popular internacional.



Uau, que história! Não sabia dessa confusão nas Filipinas. Isto é que dá encarar esses paisecos de 5ª. Realmente, quando se fala dos motivos deles terem parado os shows, nunca se conta essa passagem nesse fim-de-mundo. Se eles tivessem vindo a outro paiseco de 5ª, o BR, eles teriam encarado coisa similar, a ditadura militar de 64. Quanto à declaração sobre Cristo, não estou bem certo se Lennon foi mal interpretado ou se ele, inebriado por toda a Beatlemania, sentiu-se superior ao céu e à Terra.
ResponderExcluirSobre a declaração de Lennon, um pouco de cada. Há a vaidade, certamente.Mas o contexto foi deturpado na divulgação da entrevista nos EUA. A melhor bio já editada dos Beatles, de Bob Spitz e o livro Can't Buy me Love, de Jonathan Gold, trazem trechos e deixam evidente esses percalços.
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