quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Big Black: a invenção do Rock Industrial

O Punk Rock é comumente lembrado como um movimento que renovou o Rock por ter resgatado-lhe a essência. O pós-Punk, então, inovou ao fundir o Rock a inúmeras influências gerando sonoridades inéditas e empurrando/expandindo seus limites. Nesse contexto, poucas bandas pareceram desejar ir tão longe no avanço criativo quanto o Big Black. Formado em Evanston, IL, uma cidade da grande Chicago, o grupo alternou guitarras que cortavam feito facão e perfuravam feito broca de dentista, usou uma monolítica dissonância e bateria eletrônica, sendo precursor do Rock Industrial (e conseguindo algo ainda mais desafiador do que grupos como o Ministry e o Nine Inch Nails iriam conseguir no futuro com ingredientes similares). As letras lidavam abertamente com temas como mutilação, assassinato, estupro, molestamento de crianças, crimes, suplícios, racismo, misoginia etc. Em outras palavras, não houve tabus para o Big Black. Era curioso pois eles nunca defenderam comportamentos antissociais nem criminosos nessas canções, apenas havia um nível de familiaridade com tais temas que chocava. No processo, eles conseguiram ir até onde poucas outras se atreveram (e muitas outras evitaram a todo custo). Mas o fato é que sua trajetória causou um impacto tal qual o de um terremoto no Rock independente (o "indie Rock"). Foi um grupo que manteve-se sempre firme a seus ideais: sempre pagaram por suas gravações, agendaram seus próprios shows, se auto empresariaram e cuidaram eles próprios de sua publicidade e, com isto, conseguiram permanecer teimosamente independentes mesmo quando tantas outras bandas ansiavam pelo salto para uma grande gravadora.
O Big Black foi criação de Steve Albini, um cara magro, alto, de óculos e comportamento intenso, que passou boa parte de sua juventude em Missoula, Montana (no noroeste dos EUA). Albini foi um garoto sozinho nos seus anos de "high school" e acabou lendo sobre a então florescente cena do Punk Rock na imprensa musical. Ele começou a caçar discos e agradou do Suicide e dos Ramones. Foi autodidata na guitarra e no baixo, durante um período em que ficou convalescente após um acidente de moto. Após terminar o ensino médio, mudou-se para Evanston, IL, para estudar jornalismo e artes, mas logo imergiu na cena Punk de Chicago e tornou-se fã da banda Naked Raygun. Passou a planejar montar sua própria banda enquanto tocava numa chamada "Stations" (na linha New Wave). Foi nessa época que comprou uma bateria eletrônica Roland TR-606. Em 1982, frustrado com a incapacidade do Stations de decolar, decidiu começar uma banda consigo sozinho.
Arrumou emprestado um gravador de 4 canais em troca de uma caixa de cerveja e passou a primavera em seu quarto gravando um EP de 6 canções no qual tocava tudo: guitarras, baixo, vocais e manipulava a bateria eletrônica. Chamado "Lungs", Albini creditou o disco a um grupo fictício chamado "Big Black". O selo local de Chicago, Ruthless Records, lançou-o no final de 82. Albini também passou a escrever em fanzines locais (principalmente no "Matter") e sua variedade temática (a maioria relacionada a discutível ética da comunidade musical e com suas obsessões líricas) deu-lhe reputação de cara angustiado. As reações ao EP "Lungs" foram variadas. Albini, pelo menos, passou a ter nele um cartão de apresentação de seu "novo grupo" e passou a buscar um jeito de montar uma versão do Big Black com a qual ele pudesse tocar ao vivo. No início de 83, persuadiu Jeff Pezzati (cantor de sua amada banda Naked Raygun) para se juntar a ele no novo projeto. Durante um ensaio no porão da casa de Pezzati, Santiago Durango (que vivia no mesmo prédio e era guitarrista do Naked Raygun) veio e se ofereceu para brincar com eles. Filho de um médico colombiano que havia vindo estudar nos EUA, Durango, assim como Albini, era um desajustado social muito inteligente que encontrou consolo no som abrasivo do Punk Rock. Ele acabou se tornando membro permanente do Big Black e seu som de guitarra muscular era perfeito como contraponto ao tom metálico e irregular de Albini. A banda gravou o EP "Bulldozer" (de 83) com Pezzati no baixo, Durango e Albini nas guitarras e Pat Byrne (na bateria, mais a Roland TR-606). Enquanto "Lungs" era esparso, mínimo, barato, primitivo, cheio de um realismo desagradável e sombrio misturando Wire, Devo e Suicide (Meu Deus, o que Albini teria feito se não encontrasse o Rock para soltar sua agressividade?), "Bulldozer" fez "Lungs" parecer apenas abertura dos portões seja por seu som bem mais grosso/brutal, seja pela revelação da força da guitarra "industrial" de Albini (barulhenta e ruidosa a partir de suas influências do Gang Of Four e P.I.L.), seja pelas letras assustadoras em primeira pessoa ou pelo extraordinário trabalho do engenheiro de som Iain Burgess (que gravou aquelas 6 faixas num estúdio de 24 canais registrando as primeiras verdadeiras hemorragias sonoras e sinistas do Big Black).
Santiago Durango Steve Albini e Dave Riley
"Bulldozer" acabou recebendo muito mais atenção da imprensa e abriu caminho para "Racer-X", o terceiro EP, lançado em 84. O trio Albini/Durango/Pezzatti manteve a qualidade neste que é considerado o primeiro real e sólido lançamento com o ataque e a ferocidade que lhes faria fama. A faixa-título que abria o EP era uma homenagem ao famoso desenho "Speed Racer" (com sua batida dance mesclada com guitarras serra elétrica). Guitarras cortantes e vocais violentos enterrados na atmosfera industrial deixavam claro que algo maior e mais distorcido se avizinhava. Excursões e melhor distribuição dos EPs (graças ao um contrato de licenciamento com a Homestead Records) começaram a lhes criar fãs e um culto regional. No final de 84, Jeff Pezzatti, pressionado pelas demandas de seu emprego e do crescente calendário de compromissos do Naked Raygun, amigavelmente pediu para sair. Santiago Durango, ao contrário, optou por sair do Naked Raygun e fazer do Big Black seu compromisso nº. 1. Dave Riley, um baixista profissional que havia trabalhado em estúdios de Detroit antes de migrar para Chicago (e, então, tocando no Savage Beliefs), entrou para o Big Black. Pouco depois, eles começaram a trabalhar nas gravações do álbum de estreia. "Atomizer" (de 85) realizou o que tantos outros tentaram: aumentar o nível de extremismo no Rock! Afinal, não é todo dia que você podia ouvir uma canção considerando a "auto-imolação" com algo a se cogitar (!) ou outra que descreve o abuso de um pai sobre uma filha sob o ponto de vista dela. Musicalmente, "Atomizer" era um gigantesco assalto sonoro baseado nas batidas Roland, nos zumbidos e relinchos das guitarras e nas marretadas do baixo. A fórmula era melhor trabalhada e levada alguns passos além. "Kerosene" era um momento histórico, com sua guitarra memorável e todo o clima épico de vazio, demência, ameaça e desencanto. Uma gravação que permanece tão assustadora hoje quanto naqueles dias. O assalto sonoro e feroz somado às imagens violentas de todos os tipos fizeram do Big Black uma nova sensação da cena Indie Rock. Foi um trabalho polarizador: ou se amava ou se detestava, mas ninguém ficava neutro. Entretanto, a banda não viu sinal dos lucros e após o lançamento do single "El Duce" terminaram o acordo com a Homestead e firmaram outro com a Touch & Go Records (seu proprietário, Corey Rusk, era amigo de Albini e da banda e, anos depois, relançou toda a discografia da banda).
O primeiro álbum pela Touch & Go foi o famoso EP "Headache" (de 87). A primeira edição tinha na capa a foto assustadora de uma vítima de um acidente de carro cuja cabeça havia se partido ao meio. Uma outra capa plástica preta opaca protegia as sensibilidades de quem pudesse se aproximar daquele disco achando tratar-se, por exemplo, de um disco dos Smiths. A música, entretanto, não era tão boa quanto em "Atomizer" (algo avalizado pela própria banda num adesivo colado na capa!). E a banda estava certa. A temática não era tão chocante, ainda que não seja um trabalho esquecível. Longe disto. Das 4 faixas, três era pedradas bem barulhentas. Tensões começaram na banda. Albini e Durango achavam difícil trabalhar com Riley e os três começaram a ter problemas em harmonizar a crescente agenda de compromissos do Big Black com suas vidas pessoais. Durango decidiu voltar à faculdade e todos decidiram que aquele era o fim. Anunciaram, então, a separação com antecedência, gravaram um último álbum (metade gravado em Londres e metade no novo estúdio caseiro de Albini) e armaram uma turnê final de despedida pela Europa e EUA no verão de 87.
Após o último show em Seattle, em 11/ago/87 (no qual eles destruíram seu equipamento no final), a Touch & Go lançou "Songs About Fucking" (em set/87), um escabrosa obra-prima que acabaria tornando-se o álbum mais famoso e bem-sucedido deles. Ao contrário da maioria das bandas de Rock que, para manter as coisas interessantes, apelam para esticar canções, introduzir conceitos estranhos ou se valer de eufemismos para evitar temas espinhosos, esse disco final do Big Black fez exatamente o contrário. Nas 14 faixas, apenas uma ultrapassava os 3 minutos de duração e cada uma era tão incisiva quanto uma lâmina numa barra de manteiga. Além da coragem para serem diretos, eles conseguiram a definitiva nitidez/definição do som marca-registrada da banda. Os gritos de Albini surgem no seu aspecto mais visceral, as guitarras (dele e de Durango) não serpenteavam e a seção rítmica (Riley e a bateria Roland) mostravam-se mais tensas do que nunca antes. As músicas alinhavam personagens feios e horripilantes tal qual um rally de caminhões cheios de monstros (dê só uma sacada em "Fish Fry", onde um homem manobra seu caminhão após jogar um cadáver num lago próximo. Havia ainda um cover reverente para "The Model", do Kraftwerk). E veja o que eu encontrei no YouTube (onde mais?): sim, o derradeiro show do Big Black comentado acima! Uau, pelas barbas do profeta! O show aconteceu na Georgetown Steamplant, uma usina de eletricidade à vapor abandonada com sua estética industrial antiguada. Sem energia, tudo preciso de geradores portáteis. A noite começou com Roland Barker e amigos criando um som tipo trilha-sonora industrial. O poeta Steven "Jesse" Bernstein (famoso por suas gravações na Sub Pop e amizade com William S. Burroughs - ele suicidou-se em out/91 após abuso com drogas e doença mental) fez leitura de seus textos provocativos e divertidos. Então, o Big Black fez uma feroz performance de seus maiores "sucessos", fechando com um grand finale de cacofonia e quebradeira de instrumentos. Kim Thayil (guitarrista do Soundgarden), Mark Arm (líder do Mudhoney) e Kurt Cobain (líder do Nirvana) estavam na plateia. Confira. De uma certa maneira, vendo em retrospectiva, esse histórico show marcou metaforicamente a passagem de bastão entre Chicago, IL para Seattle, WA como centro da contracultura dos EUA. Dá prá ver Cobain no minuto 31:14 do vídeo. Um dos shows mais intensos e roqueiros que já vi. Isto é Rock'n'Roll.
Em 92, após o catálogo da banda reverter-se para a Touch & Go, "Pigpile" (um álbum ao vivo e um vídeo gravado em Londres na turnê de despedida) foi lançado. Albini engatou uma celebrada e bem sucedida carreira como produtor e engenheiro de som, trabalhando com Nirvana, Breeders, Pixies, Superchunk, Bush, Jimmy Page & Robert Plant, além de mais de mil outros artistas (maioria que nós nunca ouvimos). Ele também abriu um estúdio próprio em Chicago, o "Electrical Audio". Ele participou ainda do Rapeman (um projeto de curta duração) e o mais experimental Shellac. Dave Riley participou do grupo Bull e, em 95, ficou incapacitado após um ataque do coração. Santiago Durango trabalhou na banda Arsenal e gravou com o Boss Hog, mas sua carreira musical acabou ficando em segundo plano em relação sua profissão de advogado.

2 comentários:

  1. Nunca havia ouvido falar da banda, principalmente que tinha sido criada pelo laureado produtor, Steve Albini.

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  2. ré-ré-ré... exemplar do que o brother André chama de banda "Alternativaça".

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