Morreu na terça-feira (23/ago), em São Paulo, o jornalista Goulart de Andrade, vítima de DPCO, ou Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica. Goulart tinha 83 anos de vida e 61 de carreira. Goulart participou do icônico programa Perdidos na Noite, com Faustão, na década de 80, e impressionou gerações com o programa Comando da Madrugada . Seu bordão "Vem comigo" marcou época. O Forastieri escreveu-lhe uma bela homenagem. Adoro as análises dele, então reproduzo-a e o Mural assina junto:
A TV no início dos anos 80 era uma anarquia. Ou parecia. Os loucos tinham tomado o hospício: Goulart de Andrade, Fausto Silva, Paulo César Pereio, a turma do Olhar Eletrônico. Humor colegial, amor pela rua. Cenários toscos, gente comum, câmera na mão - a vida como ela nunca tinha sido na sala dos brasileiros.
Sotaque paulistaníssimo. Até nos programas de auditório, todos gravados na cidade, inclusive Chacrinha, que nunca foi tão doido quanto na Bandeirantes. No Rio dominava o padrão global, na própria e na Manchete, que buscava ser mais Hans Donner que o próprio. Todos os outros canais nacionais tinham sede em São Paulo - Record, Bandeirantes, TVS. Os canais locais de São Paulo, Cultura e Gazeta, fundações, orçamentos baixos, eram mais permeáveis às maluquices da garotada saída (ou ainda) na universidade. Boa parte está hoje por aí - o mais visível Marcelo Tas, que virou personalidade; o mais prestigiado Fernando Meirelles, fazendo cerimônia de Jogos Olímpicos, dirigindo filmes premiados.
A Globo dava suas cacetadas, principalmente nas séries, Plantão de Polícia, Malu Mulher e tal. Mas a ação, a gente sabia, estava nos outros canais, depois do horário nobre. Nunca assisti tanta TV quanto entre 1983 e 85. Recém-mudado pra São Paulo, morando sozinho, notívago, a TV era companhia até o hino nacional, duas da manhã, quando acabavam as transmissões.
Eu assistia tudo. Até esportes, que detesto. Via toda terça o "Clube dos Esportistas". Era um programa surreal com Sílvio Luís, Flávio Prado e Ronnie Hein sentados num sofá, recebendo boleiros (que eu não sabia quem eram, porque não assistia futebol). Sempre com um convidado musical, artistas nível Clube do Bolinha, Lilian Gonçalves. Destaque para a garçonete anã, Ferreirinha.
Goulart de Andrade era o mais ousado de todos. Ia onde ninguém ia, ao outro lado da meia-noite. Era observador, era malandro, era voyeur. Mas dava voz para os personagens, voz que eles não tinham (e não têm) nos jornais nacionais ou policiais. Goulart veio da velha TV, dos anos 50, mas soube se atualizar e se cercar de gente nova, que dava o sangue pelo Comando da Madrugada. Empresário, integrava merchandising descarado em seus programas. Foi pioneiro também nisso. Nada dá mais dinheiro hoje na mídia digital que merchan, ou, como se diz hoje, "branded content" e "native ads".
O que tem hoje de parecido? Talvez a "Vice". Mas vá direto ao original. Goulart publicou muito do que fez no seu canal do YouTube (vou lá agora ver se está a cirurgia peniana do Jamelão!). Pra se inspirar, confira essa lista com dez matérias inesquecíveis de Goulart...
O pouco que sobrou da anarquia televisiva daquele período morreu com a MTV Brasil, onde gente como João Gordo, Hermes & Renato e alguns doidos nos bastidores fizeram bonito. Agora a TV é infinitamente mais rica que trinta anos atrás, mas sempre muito bem produzida, planejada, segmentada, marketada. O espaço do risco e da surpresa é a internet, mas você jamais diria isso olhando os canais mais populares do YouTube. O vídeo na internet é cada vez mais dominado pelas personalidades, pela edição, pela busca desesperada de audiência. Tá cheio de coisa doida, e boa, mas que trabalho garimpar. Nos anos 80 a loucura estava ali no seu nariz, nas beiradas do mainstream.
Minha sensação na época é que depois de anos de TV comportadinha, nos anos da ditadura, com a abertura política tivemos uma explosão de criatividade como nunca antes. Ou eu era muito jovem e tudo parecia muito novo, surpreendente, horizonte infinito?
Essa turma, Goulart à frente, botou abaixo aos pontapés as barreiras aceitável na televisão, e portanto no Brasil. Nosso, meu, agradecimento eterno.
Retirado do site http://noticias.r7.com/blogs/andre-forastieri/2016/08/23/goulart-de-andrade-e-a-tv-80-anarquia-no-ar/
O jornalismo brasileiro fica ainda mais pobre com as mortes de Goulart de Andrade e Geneton Moraes Neto
ResponderExcluirPelo crítico Regis Tadeu.
Ontem, ao escrever o texto a respeito da morte do genial gaitista/guitarrista Toots Thielemans, eu havia prometido abordar no dia de hoje o falecimento de outro genial instrumentista do jazz. Vai ficar para amanhã, pois não posso deixar de escrever a respeito de dois dos maiores jornalistas do Brasil que partiram recentemente para a Eternidade. Parece que eu vou ter que escrever a respeito da morte a semana inteira…
Foram duas cabeças pensantes das mais privilegiadas. Cada um à sua maneira, Geneton Moraes Neto e Goulart de Andrade aguçaram os nossos sentidos e fizeram nossos cérebros funcionarem um pouco mais com reportagens e matérias que fugiam bastante do “jornalismo chapa branca” que, com raras exceções, ainda insiste em imperar em nosso País.
Geneton passou por todos os estágios em que um grande jornalista tem que ralar para se tornar um profissional respeitado. Foi repórter de grandes jornais, correspondente em Londres, editor do Jornal da Globo e do Jornal Nacional, editor-chefe do Fantástico, publicou oito livros, dirigiu documentários excelentes – Canções do Exílio, com depoimentos de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Mautner e Jards Macalé sobre o tempo em que moraram em Londres nos anos 70; Garrafas ao Mar: a Víbora manda Lembranças, com entrevistas feitas com outro dos maiores jornalistas brasileiros, Joel Silveira; Dossiê 50: Comício a Favor dos Náufragos, com entrevistas com jogadores brasileiros e uruguaios a respeito do “Maracanazzo” de 1950; Cordilheiras no Mar: a Fúria do Fogo Bárbaro, a respeito da polêmica causada pelo cineasta Glauber Rocha quando apoiou a abertura política deflagrada pelo presidente Ernesto Geisel – e, acima de tudo, fez entrevistas inacreditáveis com dezenas de personalidades, algumas quase demoníacas – como o assassino de Martin Luther King, James Earl Ray, e o general Newton Cruz, outras eternizadas pela História, como o bispo Desmond Tutu e o ex-presidente americano Jimmy Carter. Sem contar vários presidentes da República, três astronautas que pisaram na Lua, os dois militares que soltaram as bombas em cima de Hiroshima e Nagasaki, e mais um monte de gente interessante -, nunca se esquivando de fazer as perguntas que todos nós queríamos. Ele mesmo dizia que o negócio dele era ser “repórter acima de tudo” e que “fazer jornalismo é produzir memória”. Fez tudo de um modo brilhante!
Goulart de Andrade foi um provocador, nunca no sentido agressivo do termo – pelo contrário, era um sujeito gentilíssimo -, mas no atrevimento de mostrar aquilo que ninguém tinha coragem. Multifacetado – era jornalista/radialista/publicitário/ator e mais um monte de outras coisas -, teve a manha de criar um programa que se tornou antológico para quem era jovem nos anos 80, o Comando da Madrugada, no qual sua frase “Vem comigo!” era justamente um convite para tomar contato com matérias tão inusitadas quanto profundas. Valia tudo: entrevistar putas e travestis, fetichistas, políticos, músicos, malucos em geral e até gente normal, entrar em locais que ninguém se atrevia… Qualquer coisa que fizesse parte da vida de uma cidade, lá estava Goulart e seu humor meio tosco e suas perguntas ácidas e incisivas, tudo recheado com a mesma curiosidade que tínhamos sentados em nossos sofás até altas horas da noite.
Retirado do site http://r-tadeu.tumblr.com/