Em 1987, eram públicas das desavenças entre Mick Jagger e Keith Richards. Então, quando Jagger decidiu lançar seu segundo álbum solo, "Primitive Cool", Richards se desencucou e finalmente resolveu aceitar a ideia de gravar sem os Rolling Stones. Tomando a banda que ele havia reunido para tocar com Chuck Berry no documentário "Hail! Hail! Rock'n'Roll", Richards montou um disco que era direto, altamente musical e melhor do que grande parte do que os próprios Stones lançaram na primeira metade da década de 80. As faixas "Take It So Hard", "Whip It Up" e "Struggle" eram absolutos clássicos da artilharia de riffs de Richards e outras como "Locked Away" eram emotivas sem serem piegas, mundanas porém sem soarem "adulto contemporâneo". A música era forte e ótima. Enquanto o trabalho solo de Jagger soava como "Mick com alguns músicos num estúdio", Richards havia reunido uma banda, encontrado um parceiro sólido em Steve Jordan para as composições e acabou criando um disco que era livre de frescuras. Tocando por puro prazer, Richards soava bem demais e a nova banda, os "X-pensive Winos", com uma ética de trabalho totalmente diversa da dos Stones, forçou-o a focar na música. O resultado foi um grande disco construído sobre fundamentos e não sobre estilo. Difícil não ver quem era a real força musical nos Stones depois de ouvir "Talk Is Cheap".
Gravado em 15/dez/1988, durante a turnê do álbum "Talk Is Cheap", "Live At The Hollywood Palladium" era solto, reunindo o melhor do primeiro solo de Richards com alguns clássicos dos Stones (na maioria, com ele próprio cantando). Já na primeira faixa, "Take It So Hard" um detalhe saltava aos ouvidos: a ausência de qualquer polimento (que talvez fosse a única queixa que alguém poderia fazer a "Talk Is Cheap"). O álbum de estúdio já era uma porrada, superando fácil, por exemplo, "Dirty Work" (o disco de 1986 dos Stones), mas ao vivo a coisa toda ainda era mais real, com um som altamente orgânico (ausente nos trabalhos dos Stones há muito tempo) e energético. Pauladas como "Whip It Up" e "Struggle" fumegavam, enquanto Sarah Dash (fundadora da Patti LaBelle & the Blue Belle) brilhava em "Make No Mistake e "Time Is On My Side". Richards até passeava pela levada Reggae sem soar minimamente falso em "Too Rude". O álbum era excelente, pau-a-pau com as gravações ao vivo dos Stones e era é obrigatório para qualquer fã sério dos Rolling Stones ou de Keith Richards.
"Main Offender" (de 1992), o segundo álbum solo de Richards, era até mais deliciosamente focado do que o primeiro! Destaques eram muitos: "Wicked As It Seems", "Eileen" e a lancinante "999". Não dá nem para comparar com "Steel Wheels" (de 1989) ou "Voodoo Lounge" (de 1994), os álbuns dos Stones da época. Coitados. Reunido com o colaborador Steve Jordan (mais Waddy Wachtel, a dupla que o ajudou em "Talk Is Cheap") e com a banda "The X-Pensive Winos" (exatamente no período em que Jagger estava gravado seu terceiro solo, "Wandering Spirit"), em dois grupos de sessões de dez dias cada, Richards se esbaldou com seus multi-instrumentistas (todos tocando quase tudo e trocando de função entre as faixas) produzindo outra pérola com sua marca registrada: Rocks pulsantes, diretos e sem firulas. Feito num período de relativa calma na sua relação com Jagger, "Main Offender" teve ótimas análises na imprensa especializada (embora não tenha alcançado o sucesso comercial de "Talk Is Cheap") e gerou uma turnê. Talvez, "Main Offender" tivesse algumas canções até melhores que seu antecessor, que por outro lado era mais uniforme e melhor no todo.
Então, vinte e três anos depois, surge este "Crosseyed Heart" (de 2015). Também, já se vão dez anos desde o último álbum oficial dos Stones, "A Bigger Bang" (de 2005). Neste período, Richards não esteve totalmente parado. Ele ajudou Jagger a montar as reedições expandidas de "Exile On Main St." e "Some Girls" e viajou com os Stones em algumas turnês. Talvez, o melhor tenha sido "Vida", sua biografia lançada em 2010, que o colocou como um contador de estórias afiado, daqueles que ninguém antes havia parado para escutar. Então, passaram-se cinco anos, mas "Crosseyed Heart" não soa, de jeito algum, como um trabalho planejado ou super elaborado. Não é um trabalho de um perfeccionista. Não. Soa como se tivesse sido parido em uma semana (um grande feito que quase ninguém consegue soar: puramente casual). Com suas faixas parecendo jams, várias totalmente acústicas (inclusive a charmosa faixa-título e um cover de Lead Belly), o álbum até não surpreende. Nem o Boogie "Blues In The Morning" ou o Ska "Love Overdue", pois quem conhece e gosta de Richards já está familiarizado com estes desvios/afeições de sua personalidade. Há o dueto com Norah Jones em "Illusion", uma canção em que ambos parecem seduzidos pela levada lenta. Nos álbuns anteriores, Richards pareceu querer sublinhar suas referências. Agora, não mais. Ele não precisa mais provar mais nada (nem dentro dos Stones, nem fora), então apenas acomoda-se em seus ritmos favoritos (Blues, Rock'n'Roll, Country, Folk etc.), saboreando-os e apropriando-os. Este é o charme de "Crosseyed Heart": é uma gravação vencedora desde a primeira nota, onde a atmosfera conta mais do que as canções, ainda que Richards consiga escrever ainda um pacote com ótimas.
Keith Richards é a cara do rock and roll pra mim. Uma lenda viva. Uma baita músico. Adoro o seus discos solo, tenho todos. Inclusive este novo, que considero excelente, bem conforme está resenhado acima. Uma variado cardápio musical sem firulas, à vontade e com o padrão que conhecemos.
ResponderExcluirKeith Richards faz de “Crosseyed Heart” um ótimo passeio por gêneros clássicos
ResponderExcluirPelo crítico Regis Tadeu.
Com seu carisma inabalável, ele jamais vai deixar de ocupar um belíssimo pedestal na mitologia roqueira da História da Humanidade, sem a imagem paterna que muitos artistas acabam adquirindo ao longo das décadas. A multidão de admiradores de sua carreira o transformou em um ícone impossível de ser igualado, quanto mais superado. Seus movimentos jamais perderão a relevância e o caráter de sua produção musical jamais será rebaixado até o nível das subjetividades do show business. Lamento, mas esta é a pura verdade. Desculpe se lhe causei alguma depressão ao externar a minha opinião a respeito de Keith Richards. Boa sorte aí ao lidar com isto.
Escrevo isto depois de ouvir atentamente seu mais recente álbum em carreira solo, Crosseyed Heart, lançado há poucas semanas. Sim, é a mesma carreira solo que ele deixou hibernando por 23 anos – o álbum anterior, o subestimado Main Offender, foi lançado em 1992 – e que agora retoma com um trabalho magnífico.
Para a empreitada, Richards reviveu sua banda de apoio, o X-Pensive Winos – o baterista e produtor Steve Jordan, o guitarrista Waddy Wachtel, o tecladista Ivan Neville e a backing vocal Sarah Dash – para funcionarem novamente como seus parceiros e chamou vários convidados, dentre os quais se destacam a cantora Norah Jones, o saxofonista Bobby Keys - que participou do disco pouco antes de morrer – e as doces vozes de apoio de Bernard Fowler – que também trabalha com os Rolling Stones – e do cantor Aaron Neville, além do baixo de Pino Palladino, integrante da banda que acompanha Roger Daltrey e Pete Townshend no The Who.
O álbum inteiro soa como uma espécie de compêndio dos gêneros mais nobres da história da música mundial. A diminuta faixa título que abre o disco já dá uma pista disto, já que é um daqueles blues acústicos que remete às margens do rio Mississipi, principalmente porque Richards a canta como um velho bluesman bêbado. A imensa quantidade de “tintas” do country presentes na delicada “Robbed Blind” revela o apreço que o guitarrista sempre demonstrou por este universo. Tal sentimento é explícito também no maravilhoso reggae presente na versão de “Love Overdue”, do cultuado rastaman Gregory Isaacs. Já a soul music comparece esplendorosa e tranquila em “Lover’s Plea”.
Quando resolve enveredar pelo rock and roll explícito e suingado, Richards faz de “Trouble”, “Amnesia”, “Something for Nothing”, “Substantial Damage” e “Heartstopper” um verdadeiro tratado a favor da espontaneidade que o gênero perdeu há muito tempo. Tudo soa seco e espaçado, como há muito não se ouve por aí. E isto é um elogio! Dá para sacar qual é o tipo de referência – vocal, inclusive - que Mark Knopfler, por exemplo, usou para nortear a sua própria carreira solo quando se ouve uma canção como “Nothing on Me”. Não dá sequer para ouvir “Blues in the Morning” sem dar uma viajada de volta aos tempos em que o rockabilly dominava a Terra. Já as baladas “Suspicious”, “Just a Gift” e “Illusion” – esta última é uma parceria de Richards e Jordan com Jones, com a doce voz da própria - exalam uma candura que chega a ser surpreendente para quem conhece a figura pública do guitarrista.
É claro que Richards está com “aquela” voz, cavernosa e quase desafinada - fiquei até com a impressão que ele resolveu até dar uma leve sacaneada em Bob Dylan na estupenda versão de um grande clássico folk de Leadbelly, “Goodnight Irene” -, mas esta é mais uma característica de Crosseyed Heart que confere a Richards ainda mais autenticidade. Aquela que já faz parte de sua alma.
Retirado do site https://br.noticias.yahoo.com/blogs/mira-regis/keith-richards-faz-de-crosseyed-heart-um-%C3%B3timo-201713405.html